17/05/2015
O dia mal tinha amanhecido e a poderosa Vulcan já estava na plataforma de embarque, aguardando seu vagão especial. Uma das jornadas mais inusitadas para a vida de um motociclista está para começar.
NA FERRORODOVIÁRIA
É da Ferrorodoviária de Curitiba que parte o famoso trem turístico que vai até a cidade de Paranaguá, no litoral paranaense. Na verdade o trem funciona diariamente, óbvio que com bem menos dos seus 21 vagões dos feriados e finais de semana.
A composição completa foi montada ali mesmo, na plataforma, enquanto nós e as motos aguardávamos impassíveis. Vagão ia… locomotiva vinha… e o quebra-cabeças ferroviário ia sendo montado aos poucos. Por fim o vagão das motos se fez presente em nossa frente.
Uma funcionária, que era a chefe geral de todo o comboio, pessoalmente nos recepcionou e cuidou de nossas máquinas. Com ajuda de outros funcionários (e nossa), colocou as motos no vagão especial e as prendeu com firmeza em lugares apropriados.
A empresa Serra Verde Express exige, para tal transporte, que o piloto traga consigo dois pares de tirantes, sendo pelo menos um desses pares com catracas. Como o trem balança bastante no percurso, a preocupação com a segurança é rigorosa.
O vagão é adaptado, também, para deixar guardado nossos capacetes, jaquetas, etc. Nem mesmo as “malas” precisam ser levadas conosco. Melhor assim, ficamos livres e soltos para apreciar a viagem que, embora curta, levaria mais de 3 horas. Ainda bem.
Cada um dos 21 vagões que compunham o comboio daquele dia tinha um formato distinto, desenhos exclusivos e pertenciam a uma categoria diferente: Econômica, turística, executiva e camarotes para quatro ou oito pessoas, além do carro corta-fogo, onde viajariam as motos. O trem pode carregar mais de 1.100 passageiros.
Todos esses vagões tem um “serviço de bordo” personalizado, com lanches diferenciados, acentos em vários formatos e acabamentos, e guias extremamente simpáticos. Para os estrangeiros os guias podem ser bilíngues ou trilíngues.
Aguardamos sozinhos na plataforma enquanto o comboio completo era formado e presenciamos a “abertura” das portas para os turistas que viajariam até o litoral, todos com seus tickets em mãos contendo o número do vagão e da poltrona que ocupariam.
COMEÇANDO A VIAGEM
Com todos embarcados o apito soou longo. As irregularidades dos trilhos determinam o cadenciado dos balanços dos vagões. Com baixa velocidade o trem foi deixando a estação, caminhando literalmente pelas ruas centrais de Curitiba.
Passamos pelo Jardim Botânico, pelo Autódromo e fomos continuamos em direção da Serra do Mar, rumo a Morretes. Em todo esse trajeto urbano e no primeiro e mais longo túnel (o nº 13), viajamos praticamente “fora do trem”, ou seja: em pé na porta traseira, junto com a Chefe que nos orientava.
De pouco em pouco a encarregada nos mostrava as belezas do lugar e assim fomos até uma represa na periferia da cidade de Piraquara. No centro das águas podia-se ver uma enorme chaminé de uma indústria que ficou submersa. Lindas imagens capturamos.
A partir daí fizemos o que ninguém faz: Percorremos toda extensão do trem, saindo do último vagão em direção do primeiro. Visitamos todas as classes que pareciam mundos diferentes. No último vagão, que era o turístico no dia da nossa viagem, os bancos eram estofados, as janelas amplas e passageiros atentos e curiosos.
Nas classes econômicas percebemos grande alvoroço com gente tagarelando, crianças pulando e guias orientando para o que não se devia fazer. Na turística dos estrangeiros havia grande expectativa nas palavras do guia e tudo fluía com bastante calma e organização. Grupos de japoneses eram os que davam melhores exemplos de cidadania.
Nos vagões destinados aos passageiros esportistas (alpinistas, montanhistas, mochileiros, etc) o clima era bastante calmo e não prestavam muita atenção nas palavras do guia. A maioria estava na condição de passageiros que desejam chegar rápido a um destino, que quase certo era a Estação do Marumbi.
Finalmente chegamos nos vagões de luxo, com seus camarotes fantásticos. Alguns desses vagões tem cabines para quatro pessoas, outros para oito. Fomos alojados num dos maiores e mais bonitos do trem, com bancos espaçosos e mesa de trabalho ao centro.
Realmente estar num desses vagões especiais tem suas vantagens e dá até para se sentir um como o Harry Potter indo para a escola de magia. Além do lanche sofisticado, a maior vantagem é a possibilidade de ver as paisagens nos dois lados do trem.
A beleza do camarote disputava com a da natureza do nosso lado. Todo feito em madeira de lei envelhecida, com muitos quadros, cortinas, espelhos e arandelas aconchegantes, sem falar nos metais dourados das portas e utensílios, fazia com que apreciássemos a viagem da melhor maneira possível.
Nos vagões tradicionais, os passageiros que se sentem privilegiados por estar na direita ou esquerda, mudam rapidamente de opinião na viagem, pois em cada lado do trem mil encantos descortinam-se minuto a minuto, ficando sempre gente “do outro lado” amontoando-se sobre nós, para olharem pelas nossas janelas.
A HISTÓRIA DA FERROVIA
A estrada de ferro que liga Curitiba a Paranaguá é considerada a maior obra da engenharia férrea nacional e uma das mais ousadas do mundo. Com essa frase Cristian Barbosa expõe o assunto em seu blog. E não é para menos, muitos historiadores reportam sobre essa magnífica obra da engenharia com superlativos dos mais diversos.
Quem já passou pela Av. Rebouças, em São Paulo, ou por tantas outras ruas e avenidas com o mesmo nome em todo o Brasil, muitas vezes não sabe que foi esse mesmo engenheiro o responsável pela desafiadora obra de desbravar uma serra inóspita, para conduzir um trem por ela.
Antonio Rebouças e seu irmão André apresentaram o ousadíssimo projeto para D. Pedro II. O projeto inicial era apenas entre Curitiba e Antonina. Só depois, já na fase de execução da obra, foi mudado o destino para Paranaguá.
O que muita gente não sabe, também, é que os irmãos Rebouças, assim como Machado de Assis, José do Patrocínio, Cruz e Souza dentre outros, eram descendentes de escravos, todos negros ou mulatos. André foi um dos representantes da pequena classe média negra que conseguiu se destacar no II Império e uma das vozes mais importante do fim da escravatura. Se exilou por conta própria do Brasil junto com D Pedro II, após a Proclamação da República.
A construção era considerada impraticável por muitos engenheiros europeus consultados na época, mas está aí, firme e desafiadora, nos revelando a capacidade do ser humano e as belezas da natureza que Deus criou.
O início da construção de deu em 1880 e foram utilizados cerca de 9000 homens que viviam em Curitiba ou no litoral paranaense. Compunham-se na maioria por imigrantes alemães, poloneses, italianos e africanos, esses últimos escravos alforriados, já que D Pedro não usava mão de obra escrava para si ou nas obras públicas.
Mais da metade desse contingente morreu durante a construção, devido a precariedade da segurança da época. O próprio Antonio Rebouças faleceu anos antes do início da construção, restando à André convencer as autoridades da sua viabilidade, já que era oficialmente considerada impossível de ser concluída. Cinco mil pessoas mortas em cinco anos de empreitada, dá-nos a assombrosa média de 3 mortes por dia.
O primeiro construtor do projeto era de uma empresa inglesa, Giusepe Ferrucini, imigrante italiano radicado na região. Desistiu de continuar na empreitada ainda no trecho plano ao nível do mar, depois de concluir apenas 45 km do trajeto, entendendo impossível sua conclusão naquela serra íngreme e selvagem.
A conclusão da obra foi feita por um engenheiro brasileiro de 33 anos de idade, de nome Teixeira Soares, cinco anos depois de seu início. A conclusão da ferrovia foi uma mega vitória para a engenharia brasileira, feita com com pontes do mais puro aço trazidos da Inglaterra e montadas persistentemente no local.
Hoje, passados mais de 130 anos de sua construção, o abandono é bastante visível nas casas de funcionários e administradores espalhadas pelo percurso. A famosa Casa do Ipiranga, que outrora foi tida como expoente maior do estado, está completamente destruída.
“VOANDO” NA SERRA
Por falar em ponte de aço, a maior delas estava agora a nossa frente. A ponte São João atravessa um desfiladeiro numa distância de 55 metros que parecem intermináveis. A vista da serra com suas montanhas sinistras é de cair o queixo.
E é justamente aí que a estrada vai tomando um ar de aventura sem par. Já experimentou voar de avião? Sim? E de Trem? Essa é a sensação ao transpormos o “Viaduto do Carvalho”, que passa na encosta de um paredão imenso, a centenas de metros do chão. O trem dá uma diminuída da velocidade nesse ponto estratégico do percurso.
Nesse trecho os ouvidos tampam; muitas pessoas mal respiram; o silêncio é assustador e o ruído da Terra parece se fazer ouvir aos nossos pés. Há um misto de respeito e temor. Todos querem olhar pelas janelas, mas muitos voltam rápidos aos seus assentos e outros, ainda, sequer arriscam olhar.
Nesse local só se ouve as pequenas batidinhas das rodas do trem nas emendas dos trilhos e um silêncio quase mortal. Mag-ní-fi-co!!!. Feito o contorno da montanha o comboio volta a sua velocidade e ritmo normais.
A viagem continuava lenta e esperávamos mesmo que continuasse assim, pois dava-nos tempo suficiente para aproveitarmos mais das belezas que nunca paravam de se mostrar para nós. Revezávamos para fotografar entre a ampla janela de nosso camarote e a do corredor, do outro lado, dependendo da parte do trajeto onde estávamos.
ACOMPANHE UM TRECHO DO PERCURSO
NO MARUMBI
Depois de muito êxtase nessa viagem, verificamos que estávamos chegando em “algum lugar”. Estávamos parando sim: na Estação do Marumbi, que fica exatamente no Parque Estadual do Pico do Marumbi, do qual tratamos de esmiuçar com detalhes no nosso projeto De Vulcan no Marumbi, que você poderá acessar clicando no link. Muitos passageiros desceram nessa estação.
De qualquer maneira é impressionante ver todo aquele complexo de montanhas ali, na nossa frente. A beleza do Olimpo, que se sobressai entre os demais picos do complexo, é de tirar o fôlego. Centenas de câmeras fotográficas são sacadas pelas janelas nessa hora.
Falando em janelas, curte-se muito, além do visual das montanhas azuis de Morretes, ver aquela enorme “lombriga” de ferro serpenteando entre as folhagens das margens, embora os guias quase percam os cabelos recomendando-nos: cuidado, não ponham a cabeça para fora do trem, etc.
Estávamos agora na parte baixa da estrada, chegando ao nível do mar. Saímos de Curitiba, numa altitude de 934 metros, para pararmos em Morretes, a 8 metros do nível do mar. Os trilhos daquele último trecho já estavam em terreno plano e voltávamos a normalidade de um passeio de trem comum. Agora era aguardar o nosso destino, que não tardaria.
EM MORRETES
Não iríamos até Paranaguá e Morretes já estava à vista. Reorganizamos nossos equipamentos de mãos e ficamos prontos para “descer”, tão logo o trem parasse na pequena cidade. Dessa vez era o contrário: seríamos os últimos a deixar a estação, pois primeiro descem os passageiros, para só depois retirarmos as motos, com ré no trem.
Aguardamos ansiosos na estação o retorno do vagão, longe de nossas vistas. Enfim as motos foram descarregadas. Já estávamos com saudades de seu ronco sob o acento e num piscar de olhos deixamos a estação para curtir a cidade, em duas rodas.
O destino agora era outro e rumamos ligeiros para a Pousada Itupava, que nos aguardava, e que fica a uns 10 km da Estação. Só depois de tudo ajeitado retornaríamos ao centro de Morretes, para cuidar de nosso estômago no Terra Nossa.
Viajar pela Serra Verde Express é um prazer a parte e a empresa mantém empreendimentos desse porte em todo o país. Segundo especialistas do ramo, o passeio noturno feito com a Litorina da empresa é um dos três mais luxuosos do mundo. É pagar para ver.
Com essa narrativa, relatamos muito pouco de tudo que realmente sentimos nessa jornada inusitada. Viagens como essas fazemos poucas vezes em nossas vidas e sempre garantem lembranças eternas.
Esperamos que a leitura tenha sido boa.
Gostou da matéria? Faça um comentário e envie-a aos seus amigos.
Não gostou? Envie-nos então suas críticas ou sugestões.
CLIQUE AQUI PARA VER TODAS AS FOTOS
CRÉDITOS
Texto e Edição: Marcos Duarte
Fotos e vídeos: Marcos Duarte e Bruna Scavacini
conheça também:
Fotos históricas pesquisadas em:
O virtuoso Cristian Barbosa História da ferrovia André Rebouças
Muito Bacana a reportagem ! Bela viagem.
Parabéns
Agradecemos o comentário e ficamos felizes que tenha gostado da matéria.
I just added this blog site to my google reader, excellent stuff. Can’t get enough!
We are embraced by the compliments. thank you.
Nossa, matéria antiga mas sem dúvidas, uma das melhores que já vi sobre o passeio. Parabéns. Venham nos visitar novamente quando puderem…
Bom dia Caroline. Sem dúvidas. Gravamos as imagens que deram suporte para essa matéria em junho/2012, porém, estivemos várias outras vezes na região nesse meio tempo. notando que substancialmente o passeio continua identicamente prazeroso. Valeu pelo comentário.
Fiz esse percurso1983 e amei.achei emociante, já tentei 03 vezes 92 vezes o tempo indisponível e a outra cheguei entrar no trem houve imbecilio e retornei pra Bal.Camboriu..Em novembro estou pretendendo sentir essa mesma sensação..Quero comprar ingresso direto.co.o farei são 09 pessoas.
Valeu pelo comentário. Esperamos que consiga o êxito de viajar com boas condições de visibilidade. O passeio merece.
Moro em Paranaguá e nunca consegui fazer essa viagem tão emocionante. Meu bisavô participou da construção da estrada de ferro. Somos descendentes de italianos e esse ano se Deus quiser essa viagem irá se realizar. Amo tudo isso pena que nossos governantes não valorizem nossa história, com a conservação de tudo isso…inclusive as cidades históricas com seus casarões abandonados e destruídos. A maioria sem poder ser restaurados por falta de incentivo e projetos que incentivem o turismo.
Valeu pelo comentário Elizabete e não perca suas esperanças. A viagem vale a pena e insistir para a conservação de nossa história também, afinal este é o nosso objetivo com o Portal Aventuras.