18/05/2019
Nesta matéria apresentaremos ao leitor amigo uma viagem ferroviária feita numa das regiões mais ricas e polêmicas de nosso país, nas malhas da Estrada de Ferro Vitória Minas, num percurso de 664km.
O PROJETO
Para publicarmos aqui esta matéria precisamos fazer algum contorcionismo, mas realmente compensador depois dos resultados obtidos.
Deixamos São Paulo a bordo de nossa motocicleta Transalp 700 em direção de Belo Horizonte e hospedamos num bom hotel nas proximidades da Estação Ferroviária da capital mineira, bem no centro da cidade.
Como chegamos em BH por volta das 14h, aproveitamos o resto do dia para prepararmos a bagagem que seria levada no trem, bem como com as vestimentas sobressalentes de motociclismo para serem usadas na baixada capixaba, nos dias que lá ficaríamos.
A motocicleta ficaria guardada na garagem do hotel e a resgataríamos dias depois, no nosso retorno do Espírito Santo. Lá em Vitória teríamos outra motocicleta cedida por um membro do Motoculbe AMM (Adventist Motorcicle Ministry).
A programação era viajar 13h de trem no dia seguinte; ficar dois dias em Vitória; e retornar pela ferrovia por mais 13h até Belo Horizonte. Missão dada, missão cumprida.
Levamos nossa bagagem numa mochila cargueira (calça e jaqueta de proteção, botas, luvas e um capacete), onde também coube algumas mudas de roupas, material de higiene e nosso equipamento de foto e vídeo.
No corpo uma roupa leve de caminhada e tênis confortável garantiram uma viagem prazerosa.
A passagem ferroviária para o percurso integral (664km) no vagão executivo custa R$ 105,00 e pode ser comprada com antecipação nas bilheterias das estações, ou pela internet. Aconselhamos essa compra antecipada, pois na hora raramente encontraremos passagem para todo o percurso.
A VIAGEM
O trem parte da Estação Central de BH as 7h30m, mas é bom chegar com alguns minutos de antecedência, já que a composição é muito grande (mais de 15 vagões) e todos os bilhetes deverão ser conferidos no embarque pelos fiscais da empresa.
Como o hotel era muito próximo fizemos uma pequena caminhada de 5 ou 6 minutos até a Estação, com a mochila nas costas, e cruzamos as catracas em direção da plataforma de embarque.
A localização do vagão e da poltrona vem impressa no bilhete e é intuitiva: os vagões azuis são os executivos, os verdes os econômicos e os amarelos os de serviços.
Uma vez instalado na respectiva poltrona é só aguardar. O trem sai pontualmente no horário marcado na Estação Central, assim como em todas as outras 31 estações ao longo do trajeto.
Colocamos nossa mochila no compartimento próprio sobre a poltrona, ajeitamos o corpo folgadamente na confortável poltrona e aguardamos a partida.
No vagão executivo existem duas poltronas ao lado esquerdo e apenas uma do lado direito, especialmente para quem viaja sozinho, como foi nosso caso, liberando-nos para transitar com sossego pelo trem sem ter que importunar o passageiro ao lado.
O primeiro trecho entre a Estação Central e a Estação Dois Irmãos, em Barão de Cocais, ao nosso ver é o mais importante para ser visto pelos passageiros, pois passamos exatamente sobre a barragem Gongo Soco, uma das mais faladas ultimamente na mídia e com riscos duplicados à população: lama e contaminação.
Essa mina, ativa desde o início do século 18, já foi objeto de nossos comentários na matéria que fizemos em Barão de Cocais, com suas lendas de assombrações, queijo, padre, gato e ouro. Não, não é o mundo de Nárnia.
Nesse trecho da barragem a visão é magnífica (e terrível), especialmente para aqueles que estiverem nos primeiros ou últimos vagões da composição, pois poderão ver todo o comboio deslizando vagarosamente sobre os trilhos, mas também sobre uma imensa cratera cavoucada na montanha.
Continuando nossa viagem percebemos o carrinho de apoio da lanchonete vendendo lanches, refrigerantes, água, doces e biscoitos aos passageiros, bem como fazendo a reserva antecipada do “marmitex”, que será servido exclusivamente nas poltronas.
O Vagão refeitório fica liberado para o almoço a partir das 11h30m e foi para lá que nos dirigimos para curtirmos uma refeição segundo o variado cardápio.
Com 72 acomodações em mesas para quatro pessoas, com exceção de duas delas menores, o garçom vem anotar nosso pedido e receber o preço adiantado, para facilitar o atendimento.
Não é permitido o uso de bebidas alcoólicas e nem a prática do tabagismo dentro do trem, assim, nem no vagão restaurante o passageiro vai poderá saborear aquela cerveja gelada com a refeição.
Filé de frango grelhado com arroz, feijão, salada e farofa foi nosso almoço na ida, e contrafilé grelhado com arroz, farofa e salada foi nossa opção na volta.
Fora esses horários e de tempos em tempos visitávamos o vagão restaurante para tomarmos um refrigerante ou comermos algum lanche, que por sinal era muito bom mesmo.
Visitamos tanto esse vagão que em pouco tempo já tínhamos seus funcionários como amigos, com os quais conhecemos a cozinha e os cozinheiros.
O problema maior, ao nosso ver, era ver o cozinheiro preparar todos aqueles pratos com o trem em movimento, balançando para lá e para cá o tempo todo. Haja equilíbrio.
Para que o tempo passe sem muito pesar o passageiro tem como opções: assistir ao filme que está sempre passando nas inúmeras TVs espalhadas em todos os vagões; ou curtir seu filme ou jogo favorito na internet, já que a rede Wi Fi é disponibilizada à todos.
Conversar também não saiu de moda e usamos amiúde desse recurso, não só nesta, mas em todas as nossas viagens.
Temos também a opção da “caminhada” entre o primeiro e o último vagão, já que é permitida a entrada em todos os vagões, independente se a passagem é na classe executiva ou econômica. Assim, aproveitamos para conversarmos com centenas de pessoas em todos os vagões, cada qual com suas histórias e seus ideais.
Não tinha como ser diferente. Ora puxávamos assunto com um velhinho lá atrás, ora com uma criança aqui na frente, ou até mesmo com uma família inteira, num vagão qualquer.
Mas lembrem-se bem: Falar mal da empresa “Vale” não vale. Isso para a maioria deles é crime imperdoável, independente de acidentes com barragens, contaminação, exploração do solo, etc. É Deus no céu e a “Vale” na terra.
A infraestrutura do trem é muito boa. Os vagões novos vindos da Europa dispõem de ar condicionado e um par de sanitários sempre bem limpos e higienizados. Cada passageiro dispõe, ainda, de assento próprio (ninguém viaja em pé), tomadas 220V, mesa para refeições e atividades, e possibilidades de passear pelo trem todo.
Por falar em atividades, percorrer sucessivamente os vagões do trem nos remete a mundos diferentes em cada um deles. Crianças fazendo lição de casa, mulheres bordando, professoras corrigindo provas, pessoas desenhando, etc. Só não vale jogar cartas, dominó ou qualquer outro tipo de atividade congênere.
Como a diferença dos preços das classes econômicas para as executivas são ínfimas, muitas pessoas preferem a comodidade dessas últimas, não havendo discrepantes diferenças sociais entre todos os passageiros.
Por falar em diferenças sociais, bom que se diga que esse trem não é turístico, embora passe por cidades históricas que merecem nossas visitas.
Se viajamos para Vitória no vagão executivo, não tivemos a mesma sorte na volta, quando fizemos uso do vagão econômico por falta de passagem no executivo para o percurso completo.
Salvo a poltrona mais estreita e não reclináveis, o resto foi tudo igualzinho como na viagem de ida e nem deu para notar muita diferença entre as classes.
Para nossa sorte viajamos o trecho de volta sem jamais termos alguém sentado ao nosso lado, ou seja, tivemos uma “poltrona dupla” durante toda a viagem.
Por outro lado, como partimos pela manhãzinha de Vitória em direção de BR, tivemos a oportunidade de apreciarmos a paisagem pela janelinha nos locais onde não pudemos fazer na ida, pois já estava escuro, fato esse que se repetiu quando chegávamos em Belo Horizonte, na volta, quando passamos sem ver um metro a frente sobre a Mina de Gongo Soco, pois a noite já ia alta.
VÍDEO DE NOSSA VIAGEM
O TREM DA VALE
O “Trem da Vale”, como é chamado, descreve várias rotas entre os Estados de Minas Gerais e Espírito Santo, levando e trazendo mais de um milhão de passageiros todos os anos em trens confortáveis e modernos.
Mas não se iluda o leitor. A companhia Vale do Rio Doce, proprietária da ferrovia, tem sua malha ferroviária voltada principalmente ao escoamento de minérios ao Porto de Tubarão, em Vitória e, só em segundo plano serve ao transporte de passageiros, ainda assim com prioridade no leva-e-traz de funcionários da empresa aos campos de trabalho e seus familiares.
Com toda essa estrutura a Vale aproveita para “ganhar um extra” levando e trazendo pessoas entre dezenas de cidades, a um custo bem mais módico e com poucos riscos, comparados aos ônibus nas estradas comuns.
Todas as paradas ao longo das 32 estações são cronometradas com rigor, para que o trem respeite o tempo de chegada ao destino. Conforme as estações o tempo de parada varia entre um minuto (a maioria) até cinco minutos (em duas ou três oportunidades).
Os trilhos da ferrovia seguem a partir de BH em direção de Sabará, Caeté, Barão de Cocais e João Monlevade e, a partir daí e até o município de Ipatinga, seguem sempre ao lado do Rio Piracicaba.
já a partir da cidade de Ipatinga, em Minas Gerais, e até a cidade de Colatina, no Espirito Santo, os trilhos deixam as margens do Rio Piracicaba para seguirem ao lado do Rio Doce. Logo após Colatina o trem faz uma “descendente” pela serra capixaba, até chegar em Cariacica, região metropolitana da Grande Vitória.
Pelo que soubemos a linha está em funcionamento desde 1907 e a Estrada de Ferro Vitória Minas tem o único trem de passageiros diário no Brasil.
Viagem como esta seria um roteiro mágico para os amantes da natureza, mas, infelizmente, a desolação segue os trilhos em boa parte do percurso. Nesse ponto cabe um parêntese, já que este parágrafo não tem a intensão de obstar tais visitas pelos amigos da natureza, ao contrário, é um incentivo para que façam o trajeto e tirem as próprias conclusões e, quiçá, vislumbrem soluções para esse problema da exploração mineral no país, desde os primórdios do período colonial.
Se na época da inconfidência brigávamos para livrar o Brasil do jugo de Portugal, que levava para si “um quinto” de todo ouro explorado, hoje, com a nossa conivência e inércia, rezamos para que se mantenha na pátria ao menos “um décimo” da exploração, toda trasladada para Europa nos trilhos por onde passamos. Basta olhar pela janelinha.
Se por um lado sentimos realizados por cumprirmos essas 26 horas dentro de um trem, por outro sentimos entristecidos, para não dizer horrorizados, com a exploração das montanhas que são literalmente “colocadas abaixo” por mecanismos gigantescos, levando nosso patrimônio econômico e deixando o risco de morte e de acidentes aos moradores adjacentes.
Com esse tipo de reflexão mental desembarcamos novamente na Estação Central em Belo Horizonte e, juntamente com centenas de outras pessoas buscávamos as ruas da cidade, como se tivéssemos saindo de um estádio de futebol depois de um clássico.
Em pouquíssimos minutos já estávamos de volta ao nosso hotel preparando um bom banho e uma caminha quente, já que no dia seguinte seguiríamos um roteiro que não nos saia da mente: A rota das barragens, entre BH e Congonhas, onde existe outra barragem pronta para romper.
De qualquer forma é preciso convir: a viagem é muito prazerosa e nos proporciona momentos de muito aprendizado, quer vendo os trechos de rara beleza e cheio de verde; quer vendo nossa terra ser devastada à exaustão.
Para os interessados na viagem segue o mapa ilustrativo de todo o percurso desenvolvido pela malha ferroviária da linha Vitória a Minas, bem como de todas as Estações ao longo do caminho e das cidades atendidas pela ferrovia.
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CRÉDITOS
Texto e Edição: Marcos Duarte
Fotos e vídeos: Marcos Duarte
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